Blog do Alex Antunes
Na notícia mais bizarra e engraçada da semana, a concorrente a miss Amazonas, Sheislane Hayalla, inconformada com o segundo lugar, arrancou a coroa da vencedora. O vídeo correu as redes e, claro, está gerando uma quantidade de memes – na minha montagem predileta, X-lane arranca a coroa da rainha Elizabeth. X disse que esse é o meme predileto dela também, mas possivelmente por razões opostas às minhas.
O que causa o irresistível efeito humorístico? É que o que seria o ápice de uma, err, solenidade de posse é perturbado por uma explosão de rivalidade e inconformismo. Mas não só. Concursos de miss são uma das coisas mais anacrônicas e idiotas persistindo na humanidade, resíduo de uma época em que o ideal feminino era um misto de beleza-padrão e, err, bons modos.Uma “posse” de miss é a posse de ninguém sobre coisa nenhuma. Na verdade as meninas é que são apossadas e prostituídas (numa forma bastante cínica e “casta” de prostituição) por uma ilusão de importância. Não só não é um tipo de concurso inofensivo, como em lugares tipo a Venezuela virou um verdadeiro pesadelo social, ao qual até Chavez e Maduro se curvaram.
A atitude pseudo-punk de X é duplamente inadequada, o que no fim a desautoriza. X segurou as mãos da vencedora Carol aguardando o anúncio do resultado; se tivesse vencido, estaria tudo bem para ela. Só depois acusou a organização do concurso de ser corrupta, e do resultado já estar combinado.Há um trecho de sua fala que é revelador do ridículo da situação, tenha havido batota ou não: “tinham (sic) candidatas mais preparadas, que batalharam, emagreceram, correram atrás, conseguiram patrocínio para estar ali, e nem entraram no top 5”.
Na verdade, esse “esforço” de que X fala não tem nenhum merecimento, e não poderia ser recompensado com nenhuma forma de justiça, simplesmente porque não há uma mulher “mais bonita” ou “mais perfeita” do que outra na disputa. Não deveria sequer haver a disputa.
Qualquer resultado num concurso de miss é uma batota; a única questão é quem vai ocupar que papel na encenação. E para X o único resultado aceitável era o papel principal.
Intuitivamente, X acertou: frequentemente o papel de vilão supera o de herói em interesse do público. O timing de X para a vilania se confirma no vídeo de (não) desculpas – por mais que ela queira se afirmar como justiceira.
É nisso que nos parecemos todos com Sheislanes. Raramente nosso senso de “justiça” abarca a questão toda; em geral tem mais a ver com o gatilho da frustração pessoal. Como Sheislanes, costumamos aceitar as regras do jogo, por mais absurdas que pareçam, se nosso protagonismo estiver garantido.
Em geral lidamos respeitosamente com “autoridades” – e com uma frequência inquietante a construção social, cultural e psíquica de tal “autoridade” é baseada em valores falsos, ou no limite em valor nenhum (como a autoridade da rainha Elizabeth, cuja coroa X acharia divertido tomar). A nossa flexibilidade para coadjuvar (e legitimar) encenações de poder ridículas costuma ser grande. Sheislane só baixa quando pisam nosso calo – e não quando pisam o do outro.
Por exemplo. Rafinha Bastos, quando diz que é Charlie, e reclama das “injustiças” a que foi submetido, como o paladino da liberdade de expressão que se considera, definitivamente é uma Sheislane. Acusa ele: “Onde estava você quando eu tive meu DVD ‘A Arte Do Insulto’ censurado, em 2012? E quando perdi processos judiciais? Quando 300 pessoas picharam frases de ódio e destruíram a porta do meu bar? Quando eu perdi papéis no cinema? Quando deixei de ter programas na televisão? (…) Quando eu tentava falar sobre liberdade de expressão, mas era tachado de arrogante, prepotente e babaca?”.
Ora, os Charlies foram assassinados, e exatamente por desacatarem a “autoridade” religiosa. Rafinha, cuja “arte do insulto” não visa exatamente autoridades, foi processado e perdeu, mesmo tendo dinheiro e contatos para garantir o melhor advogado. Perdeu totalmente dentro das regras. E a encenação de democracia nem é das piores encenações. A de concurso de miss – assim como a de comédia de macho branco playba, zoando de estupro – certamente é uma encenação mais cruel e injusta.
Já X diz que quer investir na carreira de atriz. O escândalo não foi um mau start. Certamente o concurso de miss Amazonas não teria essa visibilidade toda, a não ser por um mico com esse impacto simbólico (involuntário). Se X entender – ao contrário de Rafinha – que tem o perfil canastrão da vilã rancorosa, e não o da heroína, pode ter alguma chance. De cara, já tem mais graça do que o Rafinha.