Em julho do ano passado, Jair Bolsonaro decidiu marcar uma reunião com o então ministro da Cidadania, Osmar Terra, para discutir os rumos da Ancine, a Agência Nacional do Cinema. Entre os possíveis futuros para o órgão cogitados pelo presidente estava até mesmo sua extinção.
A motivação por trás de uma possibilidade tão drástica seria uma série de produções audiovisuais aprovadas pela agência e consideradas absurdas por Bolsonaro. Um dos casos lembrados foi o de “Born to Fashion”, um reality show para a revelação de novas modelos.
Sem linguagem ou estética que pudessem ser consideradas inapropriadas ou ofensivas –o programa recebeu classificação indicativa de 12 anos–, “Born to Fashion” parece ter incomodado o presidente por causa do elenco, formado por mulheres transgênero.
O novo reality do E! reúne um grupo de jovens trans numa casa, onde competem e aprendem sobre o universo da moda. O projeto foi autorizado a captar cerca de R$ 3 milhões pela Ancine, em 2018.
“É uma vitória lançar um programa como o ‘Born to Fashion’, não somente para as candidatas do reality, mas para a sociedade no geral. Nós buscamos transgredir, combater preconceitos, então nossa missão é justamente trazer uma reflexão e uma reavaliação de conceitos e valores”, diz Lais Ribeiro, que comanda a atração.
Piauiense, ela é uma das modelos mais bem-sucedidas de sua geração e já desfilou para grifes como Chanel e Louis Vuitton. O reality tem ainda um time de especialistas, formado pelo maquiador André Veloso, pela estilista Lila Colzani e pela artista Alice Marcone, que é trans e também assina o roteiro de “Born to Fashion”.
O grupo de apresentadores, de acordo com Marcone, representa o principal objetivo do programa –unir pessoas para que a causa trans ganhe visibilidade. “Eu sinto que a grande mensagem é justamente a possibilidade de aliança”, diz.
“A gente vive em um momento de polarização, então o intuito do reality é unir as pessoas. E por isso a gente tem uma apresentadora como a Lais, que é cisgênero, mas tem uma abordagem técnica edensa do mundo da moda. Ela está lá para construir pontes.”
A modelo define seu papel de forma semelhante. Mesmo estando distante da realidade trans, ela quer usar sua voz para apresentar o universo LGBT aos telespectadores que sintonizarem em “Born to Fashion” simplesmente por serem fãs de competições ou de moda.
“O respeito pela diversidade e a busca pela inclusão precisam fazer parte da luta de todos nós”, diz Ribeiro. “É por isso que busco oferecer minhas plataformas para colaborar de alguma forma.”
Marcada há anos por padrões estéticos homogêneos, a indústria da moda tem se aberto, aos poucos, a figuras dissonantes. A modelo diz que “Born to Fashion” chega em boa hora, como mais um esforço em prol da pluralidade.
O melhor exemplo das lentas transformações na indústria é a própria trajetória de Alice Marcone, que no passado não encontrou espaço para trabalhar com moda, mas que agora volta a ela em grande estilo.
“Eu fiz alguns trabalhos por meio de uma agência –participei de edições da São Paulo Fashion Week, de desfiles e de algumas campanhas–, mas fui me afastando desse universo. Isso porque eu fui ficando muito frustrada”, afirma a roteirista. “Eu vivi várias situações de transfobia nesse mercado, então eu realmente me desiludi com a moda.”
E, se o fator competição de ‘Born to Fashion’ levanta dúvidas sobre o discurso de união tão destacado por Ribeiro e Marcone, a dupla explica que, para além de mirar um prêmio –um contrato com uma agência e a capa de uma revista especializada–, as participantes terão no programa uma escola.
“Existe competitividade, até porque isso faz parte do mercado, mas a gente quer, acima de tudo, preparar as participantes”, diz Marcone, lembrando oratória, dança, escrita e atuação como exemplos de aulas que as competidoras tiveram durante as gravações.
“É uma abordagem humanizada da história de vida de cada uma. Afinal, não estamos lidando só com uma bandeira, mas com pessoas.”Fonte/Notícias ao Minuto