Chegar à rua de casa de mãos dadas, passear abraçadas no shopping ou tomar uma cerveja no bar da esquina, trocando beijos e olhares no fim do expediente, são situações que fazem parte da rotina de muitos casais heterossexuais. Porém, quando querem fazer coisas simples como essas, Mara Vargas e Ana Paula Vargas, casadas e moradoras de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, viajam mais de 30 quilômetros para se sentir mais à vontade, na orla da zona sul do Rio. No lugar onde moram, evitam “se expor”.
“A gente gosta de sair para dançar, em boate LGBT [sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais], para curtir e beber. Em qualquer outro lugar, não vai ser a mesma coisa. Do jeito que está a violência hoje em dia, às vezes, é preferível nem sair”, diz Mara, 31 anos, que completa um ano de casada com Ana Paula, de 27 anos, em dezembro.
Mesmo com os direitos garantidos civilmente, casais homoafetivos muitas vezes enfrentam constrangimentos e inseguranças na hora de demonstrar publicamente os sentimentos, o que a Justiça já resguardou. “Embora já se tenha um reconhecimento civil, formal e burocrático, existe preconceito muito forte que inviabiliza que essas pessoas tenham tranquilidade para manifestar seu afeto e falar disso abertamente”, explica a psicóloga Daniela Murta, assessora de Saúde da Coordenadoria de Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro.
“Nem sempre é a homofobia da agressão física, embora um dos motivos seja o risco de isso acontecer. Um beijo, um carinho, às vezes, são vistos como falta de respeito por quem está em torno. Eles [os homossexuais] não reproduzem o preconceito contra si mesmos e, sim, respondem a um preconceito ao qual são submetidos. Se você está em uma situação em que se considera vulnerável, não vai se expor”, analisa Daniela. “As pessoas têm direito à livre manifestação do afeto, e esse é um reconhecimento que ainda não foi introjetado por toda a sociedade.”
No Brasil, o casamento homoafetivo é estendido a todo o país desde maio de 2013, quando entrou em vigor a Resolução 175, de 14 de maio de 2013, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Segundo o texto, os cartórios de todo o país não podem se recusar a celebrar casamentos civis de pessoas do mesmo sexo. Antes disso, já havia decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Preconceito
Há mais de um ano juntos, Marcelo e Eric Graciolli programaram a viagem de lua de mel e marcaram uma festa informal, um churrasco, para celebrar o casamento que conquistaram após uma saga burocrática de mais de 100 dias. Encomendaram doces e um bolo de casamento e chamaram a família para compartilhar a festa, que só teve um beijo, “selinho”, que veio acompanhado de uma memória que permanece nas lembranças que guardam da festa. “A mãe dele virou o rosto. Um sobrinho correu para a cozinha e vimos risadinhas”, conta Marcelo, que tem 40 anos.
“Nesse dia, combinamos de não nos beijar na frente da família. Percebemos que eles não estão prontos. O problema não somos nós, mas preferimos ter uma convivência mais tranquila”, lembra o publicitário, que mora em Florianópolis, cidade que ele considera liberal e, mesmo assim, onde não se sente seguro para demonstrar afeto publicamente.
Os dois estão acostumados a promover festas em casa, a cuidar dos sobrinhos e a hospedar a família, mas, sempre sem demonstrações de afeto. “Meus sobrinhos sabem que somos casados e desenham a gente com coraçãozinho. As crianças entendem melhor que os adultos”, diz Marcelo.
A regra de não demonstrar amor em público vale para qualquer situação em que não estejam sozinhos. Uma vez, por acidente, a diarista que contratavam para limpar o apartamento entrou no quarto e flagrou um beijo. “Ela foi embora e nunca mais retornou nossas ligações. Ela sabia que a gente morava junto, tinha foto pela casa toda, usávamos alianças e só tinha uma cama de casal, e, mesmo assim, se escandalizou. Parecia que trabalhava para Satã.”
Gabriela Sudano, de 29 anos, é casada há um ano meio e costuma dar as mãos à mulher, beijar e agir naturalmente como casal, além de frequentar a escola de sua enteada, que mora com elas, e levá-la para passear. “Desde o início do namoro, a gente não se preocupa com isso. Não temos problema nenhum. É óbvio que não vai ser em qualquer local e que talvez as pessoas achem estranho. Talvez, o que as pessoas estranhem é que a gente veja nossa relação como normal.”
Nascida em um lar religioso, a professora de inglês conta que a relação com a família é muito boa. “Sempre fui muito bem tratada. Sempre me respeitei muito e respeitei muito a minha família. Eles são evangélicos e frequentam sempre a minha casa. Passamos Natal e aniversários juntos. Sei que eles têm um pensamento diferente, mas eles me respeitam.”
Mudança cultural
O ativista Toni Reis e seu marido, David Harrad, foram os primeiros a oficializar a união estável no Brasil, em 2011. Há 25 anos juntos, Toni conta que levam uma vida reservada, em que se permitem “bitocas” e “um carinho no restaurante”. “Minha geração viveu muita repressão. Meus amigos da minha idade não conseguem demonstrar afeto, mas a meninada, de 15, 16, 17 anos, fica abraçada, beija. A geração mais nova está sendo superousada. Sou uma pessoa em que, no inconsciente, ainda está uma repressão muito grande”, conta ele, que acrescenta: “Vejo os meninos beijando na boca de uma forma tão tranquila que, às vezes, eu me surpreendo”.
Para Toni, as mudanças na sociedade serão lentas e políticas como a criminalização da homofobia e a abordagem da diversidade de gênero na educação podem ajudar. “Tudo isso é cultural, e a cultura não muda com a lei. Leva mais tempo”, diz o ativista, que vê o futuro com otimismo. “Tenho esperança de que quanto mais a gente veja casais se beijando, mais as pessoas se acostumem. O que nós estamos exigindo não é que nos convidem para tomar um chope, um vinho nem levar a gente para casa. Isso seria ótimo, mas o que a gente quer é respeito.”