Para justificar a censura que impôs à Folha de S.Paulo, na última sexta-feira (28/09), impedindo a entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), recorreu à mesma citação usada por ele, em junho de 2011, para rejeitar qualquer forma de desrespeito à liberdade de expressão. Foi quando o plenário do Supremo discutiu e aprovou o direito da sociedade debater – e até se manifestar publicamente, inclusive com passeatas – a descriminalização do uso da maconha.
Na decisão de sexta-feira, Fux voltou a citar o voto dissidente de “Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte dos EUA, em 1919, no célebre caso Abrams versus United States”, para defender a necessidade do controle da informação pelo Estado. No seu despacho expôs que, conforme o voto do juiz norte-americano, o “mercado livre de ideias possui falhas tão deletérias ao bem-estar social quanto um mercado totalmente livre de circulação de bens e serviços. Admitir que a transmissão de informações seria impassível de regulação para a proteção de valores comunitários equivaleria a defender a abolição de regulações da economia em geral”.
Curiosamente, em junho de 2011, recém empossado como ministro (03/03/2011), quando o Supremo, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 187, decidiu pela não criminalização da defesa do uso da maconha, Fux foi intransigente ao rebater qualquer possibilidade de censura. Ao fundamentar seu voto, também usou citações de Holmes no julgamento de 1919.
Para rebater a censura, citou o trecho em que o juiz americano diz que “o melhor teste de veracidade é o poder de uma ideia de obter aceitação na competição do mercado (tradução livre do inglês); não caberia ao Estado, mas à livre circulação (free trade) ou ao livre mercado de ideias (marketplace of ideas) estabelecer qual ideia deveria prevalecer.”
Ou seja, em 2011, ele afastou qualquer possibilidade de censura, não apenas com a citação de Holmes, mas também de diversas decisões do próprio Supremo de que pela Constituição de 1988 não existe possibilidade de censurar. Decorridos sete anos, esqueceu-se das decisões anteriores do Supremo contra a censura e, respaldando-se no mesmo voto de Holmes em 1919, defendeu o inverso.
Além de citações contraditórias e omissões dos seus votos anteriores, ao censurar a Folha Fux repetiu o gesto do desembargador João Pedro Gebran Neto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Este, em julho passado, suspendeu um Habeas Corpus dado ao ex-presidente pelo seu colega de plenário, desembargador Rogério Favretto, avocando indevidamente o processo para si.
Atual vice-presidente do STF, na sexta-feira, Fux assumiu as vezes do presidente da corte – apesar de ele estar no Brasil – e, unilateralmente, suspendeu a decisão de seu colega, o ministro Ricardo Lewandowski, na Reclamação 32.035/PR, que autorizara a Folha a entrevistar o ex-presidente na Polícia Federal, em Curitiba. Ou seja, ao impor a censura, atropelou códigos processuais e o regimento interno do STF, revendo monocraticamente uma decisão de um ministro igual a ele. Não existe previsão legal de um ministro rever decisão do outro.
Além disso, aceitou o pedido do Partido Novo que não está gabaritado para fazer tais recursos. Sem falar que tratou da decisão do colega como uma Liminar quando, na realidade, Lewandowski fez um julgamento do mérito em uma Reclamação. Desta sua decisão, qualquer recurso tem que ser apreciado pelo plenário do STF e não por outro ministro, ainda que ele estivesse realmente no exercício da presidência da corte.
Ao autorizar a entrevista de Lula à Folha, o ministro Lewandowski citou seu ex-colega de Supremo, Carlos Ayres Brito, na famosa votação da ADPF 130/DF, quando a corte concordou com o relator da matéria de que “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”.
Na sua decisão (cuja integra vai abaixo) Lewandowski também rebateu argumentos usados pela juíza da Vara de Execução Penal de Curitiba, Carolina Moura Lebbos que alegou não existir previsão legal para que presos sejam entrevistados. Diz o ministro do STF:
“Note-se que, como assinalado pela Magistrada de primeiro grau, a Lei de Execuções determina que o contato do preso com o mundo exterior se dá “por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes”. Na decisão reclamada, todavia, não há qualquer menção à forma como a concessão de entrevista jornalística comprometeria a moral e os bons costumes. O STF, em inúmeros precedentes, mesmo antes do julgamento da ADPF 130/DF, já garantiu o direito de pessoas custodiadas pelo Estado, nacionais e estrangeiros, de concederem entrevistas a veículos de imprensa, sendo considerado tal ato como uma das formas do exercício da autodefesa“.
Fux, ao censurar a Folha, impedindo a entrevista de Lula – e até proibindo a divulgação caso já tivesse sido feita – atropelou todas as decisões do próprio Supremo, com as quais concordou inúmeras vezes.
Embora não fosse do STF quando do julgamento da ADPF 130, Fux a incorporou em seus votos como no julgamento da Medida Cautelar na Reclamação 18.290/RJ, em 12 de agosto de 2014, da qual foi relator. Sua decisão copiou o que disse Ayres Brito:
“a plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo” de tal sorte que “a crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada“.
Na sexta-feira, porém, se autointitulado “Ministro Presidente”, considerou que a interpretação conferida ao conteúdo do julgamento da ADPF 130 por Lewandowski, ” exorbita de seus termos e expande a liberdade de imprensa a um patamar absoluto incompatível com a multiplicidade de vetores fundamentais estabelecidos na Constituição”.
Recorre novamente ao julgamento dos Estados Unidos em 1919, usando desta vez o argumento para defender exatamente o oposto do que defendeu em 2011. Na sua decisão (transcrita abaixo) fala, inclusive, em “informações nocivas”:
“Sabe-se que o “mercado livre de ideias”, primeiramente referido por Oliver Wendell Holmes Jr. no caso Abrams v. United States, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1919, possui falhas tão deletérias ao bem-estar social quanto um mercado totalmente livre de circulação de bens e serviços. Admitir que a transmissão de informações seria impassível de regulação para a proteção de valores comunitários equivaleria a defender a abolição de regulações da economia em geral. Por essa razão, Richard Posner já defendia a necessidade de regulação da liberdade de expressão, sempre que remediar de forma eficiente os riscos de divulgação de informações nocivas (POSNER, Richard A. “Free Speech in an Economic Perspective”. In: 20 Suffolk U. L. Rev. 1 [1986]).“
Curiosamente, ao contrário de posicionamentos anteriores, fala em “relativização da liberdade de imprensa” adotando a tese – ainda que de forma indireta, sem mencioná-la abertamente, da necessidade de tutelar o eleitor para que não cometa erros nas urnas. Ele diz na decisão (cuja íntegra reproduzimos abaixo):
“A regulação da livre expressão de ideias é particularmente importante no período que antecede o pleito eleitoral, porquanto o resguardo do eleitor em face de informações falsas ou imprecisas protege o bom funcionamento da democracia (art. 1º, parágrafo único, da CRFB), a igualdade de chances, a moralidade, a normalidade e a legitimidade das eleições (art. 14, § 9º, da CRFB). Isso porque a desinformação do eleitor compromete a capacidade de um sistema democrático para escolher mandatários políticos de qualidade. A confusão do eleitorado faz com que o voto deixe de ser uma sinalização confiável das preferências da sociedade em relação às políticas públicas desejadas pelos anos que se seguirão. É nesse sentido que se faz necessária a relativização excepcional da liberdade de imprensa, a fim de que se garanta um ambiente informacional isento para o exercício consciente do direito de voto.”
Em 2011, ao julgar com seus pares a ADPF 187/DF, sobre a legalidade do debate público em torno da descriminalização da maconha, Fux – cujo voto na íntegra pode ser visto abaixo, a partir da página 123 – rebateu qualquer espécie de forma de censura. Para justificar sua posição contra a censura, apelou ao voto dissidente de Oliver Wendell Holmes Jr, no julgamento de 1919, do qual extraiu o seguinte trecho:
“Coube ao Juiz Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte dos EUA, no voto dissidente proferido no célebre caso Abrams v. United States (250 US 616), afirmar que “o melhor teste de veracidade é o poder de uma ideia de obter aceitação na competição do mercado” (tradução livre do inglês); não caberia ao Estado, mas à livre circulação (free trade) ou ao livre mercado de ideias (marketplace of ideas) estabelecer qual ideia deveria prevalecer“.
Cuida-se, impende frisar, não apenas da autonomia privada do indivíduo, isto é, da autocondução independente da pessoa segundo seus próprios desígnios (o que decerto envolve seu livre juízo pessoal a respeito da legitimidade das prescrições da legislação penal a respeito de questões como o consumo de entorpecentes), mas também – e sobretudo – da autonomia pública, assim considerada a sua livre inserção no debate público. Especificamente sobre este aspecto, não pode haver dúvida de que a liberdade de expressão é crucial para a participação do cidadão no processo democrático“.
Em 2011, Fux fez outras citações para rejeitar a censura. Seu voto recorreu a Paulo Gustavo Gonet Branco (Mendes, Gilmar Ferreira; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 297-298), quando ele, na obra citada fala do que ensinou Ulrich Karpen:
“A garantia da liberdade de expressão tutela, ao menos enquanto não houver colisão com outros direitos fundamentais e com outros valores constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não – até porque ‘diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista’. […] A liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, tem, sobretudo, um caráter de pretensão a que o Estado não exerça censura.”
Em seguida ele afirma, em forte contradição com a decisão de sexta-feira: “a Constituição Federal, por intermédio dos arts. 5º, IV e IX, e 220, assegura a livre manifestação do pensamento, insuscetível de censura ou licença, isto é, de limitações prévias de conteúdo pelo Estado. São igualmente livres os modos de expressão do pensamento, que não se esgotam nos pronunciamentos verbais, também comportando a manifestação escrita, visual, artística ou qualquer outra”.
Vale ainda lembrar que no famoso debate sobre o direito de bibliografias sem autorização dos bibliografados, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815, relatada pela ministra Cármen Lúcia em fevereiro de 2016, Fux também se posicionou contra qualquer censura e ainda registrou em seu voto:
“entendo à semelhança de Sua Excelência, a Relatora, que liberdade e censura são tão inconciliáveis como a ira e o amor. E o Supremo Tribunal Federal é um guardião da Constituição Federal e é guardião dessa liberdade plena a que se refere o artigo 220 da Constituição Federal”.
Na sexta-feira, ao decretar a censura à Folha, impedindo-a de entrevistar o ex-presidente Lula, Fux, ao que parece, abriu mão de ser guardião da Constituição e admitiu conciliar aquilo que outrora disse ser inconciliável: liberdade e censura.
Cabe agora ao presidente, de fato e de direito, do STF, Dias Toffoli, e aos demais ministros se posicionarem se ainda vale tudo aquilo que o próprio Supremo já estipulou: a Constituição de 1988 não admite qualquer forma de censura. Seja ela por que motivo for.