Conjur – Em seu livro Nada Menos que Tudo, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot dá razão a uma reclamação antiga do ex-presidente Lula, já negada pelo Supremo Tribunal Federal. No capítulo 15, em que Janot descreve o ex-presidente como “objeto de desejo” da “lava jato”, o ex-PGR confirma que a denúncia feita contra ele pela força-tarefa de procuradores de Curitiba atropelou as apurações tocadas por Brasília e desrespeitou uma decisão do ministro Teori Zavascki.
O capítulo contradiz uma manifestação de Janot ao Supremo sobre o caso. No livro, Janot conta que, em setembro de 2016, logo depois de denunciarem Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, um grupo de procuradores liderado por Deltan Dallganol foi até a PGR para uma reunião com o então procurador-geral. Eles queriam que Janot adiantasse a denúncia referente ao Inquérito 3.989 para salvar o trabalho deles.
O inquérito ficou conhecido como a investigação do “quadrilhão do PT”. A tese ali é de que o PT não é um partido, mas uma organização criminosa que se destina a desviar dinheiro da Petrobras para financiar suas campanhas e se manter no poder. O inquérito foi formalmente aberto em março de 2015, mas só em abril de 2016 Janot foi concluir que nada da tese faria sentido se Lula também não fosse acusado de integrar a organização criminosa — a tese foi chamada de “cerebrina” pela defesa do ex-presidente, feita pelos advogados Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Martins e José Roberto Batochio.
É esse o trecho em que o livro contradiz a atuação institucional de Janot. Numa reclamação de agosto de 2016, a defesa de Lula informou ao Supremo que a 13ª Vara Federal de Curitiba, então sob o comando de Sergio Moro, havia usurpado a competência do tribunal. O Inquérito 3.989 investigava Lula por organização criminosa e o MPF tocava em Curitiba um inquérito que apurava corrupção passiva e lavagem de dinheiro do ex-presidente. Era o caso do apartamento no Guarujá, litoral norte de São Paulo, pelo qual Lula foi depois condenado.
Teori negou a reclamação no dia 5 de setembro de 2016. Disse que o inquérito era um momento de apuração preliminar e não fazia qualquer enquadramento da conduta de Lula num crime específico. Isso só aconteceria na denúncia, se houvesse. E além disso, continuou o ministro, o inquérito no Supremo imputava ao ex-presidente o crime de organização criminosa, e as investigações de Curitiba falavam em corrupção e lavagem de dinheiro.
Os advogados de Lula agravaram da decisão e Janot deu parecer contrário ao agravo. É esse o parecer que o livro contradiz. Na manifestação ao Supremo, o ex-PGR disse que os inquéritos de Curitiba apuravam condutas autônomas, não relacionadas ao que se investigava em Brasília. E por isso não havia usurpação de competência e nem relação entre os inquéritos.
No livro, entretanto, Janot disse que Curitiba havia manobrado para interferir no seu trabalho e agora o pressionava a obedecer — mesmo que a precipitação dos paranaenses tenha afrontado uma decisão expressa do ministro Teori, como se verá.
O agravo foi negado por unanimidade pela 2ª Turma do Supremo. O processo transitou em julgado em outubro de 2017.
Cadeia de comando
A reunião que os procuradores pediram a Janot foi para explicar que eles haviam se precipitado. Apresentaram a denúncia por corrupção e lavagem e convocaram a famosa entrevista coletiva em que fizeram a constrangedora apresentação de PowerPoint.
Só que o crime de lavagem exigia a prova do cometimento de um crime antecedente que rendesse dinheiro ilegal ao criminoso, para que ele então precisasse lavá-lo. O crime antecedente seria a organização criminosa, ainda em estágio inicial de apuração. Teori só autorizou a inclusão de Lula no Inquérito 3.989 em outubro de 2016, mais de um mês depois da denúncia de Curitiba.
Na reunião, Deltan e seus colegas explicaram que Janot precisava adiantar a denúncia contra Lula no Supremo para que a denúncia feita à Justiça Federal no Paraná pudesse fazer sentido. “Se você não fizer a denúncia, a gente perde a lavagem”, disse Deltan, segundo o livro. Janot disse que não pretendia obedecer Curitiba, já que adotara o critério de fazer as denúncias conforme o avanço das investigações, e não de acordo com o xadrez político jogado pelos colegas paranaenses.
“Você está querendo interferir no nosso trabalho!”, disse Deltan.
Janot, segundo o próprio relato, foi enfático: “Eu não quero interferir no trabalho de vocês. Ao que parece, vocês é que querem interferir no meu. Quando houve o compartilhamento da prova, o ministro Teori excluiu expressamente a possibilidade de vocês investigarem e denunciarem o Lula por crime de organização criminosa, que seguia no Supremo. E vocês fizeram isso. Vocês desobedeceram à ordem do ministro e colocaram como crime precedente organização criminosa. Eu não tenho o que fazer com isso”.
Ele se referia a um despacho de Teori de meses antes da reunião. A pedido de Curitiba, Janot pedira ao ministro o compartilhamento das provas do Inquérito 3.989 com a força-tarefa. Teori autorizou, mas com a condição de que Curitiba não poderia tratar de organização criminosa em suas investigações, já que isso estava a cargo do Supremo.
“Ora, e o que Dallagnol fez? Sem qualquer consulta prévia a mim ou à minha equipe, acusou Lula de lavar dinheiro desviado de uma organização criminosa por ele chefiada”, conta Janot, em Nada Menos que Tudo.
Linha do tempo
A denúncia contra Lula o “caso tríplex” foi feita no dia 14 de setembro de 2016. A reunião da força-tarefa com Janot aconteceu em setembro, “pouco depois” dessa denúncia, conforme conta o ex-PGR, em seu livro. No dia 16 de setembro, no entanto, Janot apresentou sua manifestação ao Supremo dando razão à conduta de Curitiba em relação às investigações contra o ex-presidente.
Há algo errado, portanto. Quando a denúncia do tríplex foi feita, Teori já havia, em decisão monocrática, negado a reclamação de Lula – que, afinal, tratava do inquérito. Ou seja, quando o então PGR apresentou sua manifestação ao STF, o entendimento de Teori sobre as investigações já era conhecido e a denúncia já havia sido feita a Moro por Curitiba.
Resta saber se Janot se manifestou a favor de Curitiba mesmo sabendo que os procuradores haviam errado na condução do caso ou se o que ele fizera durante a reunião com Deltan e colegas foi só jogo de cena — considerando que a reunião aconteceu e nos termos relatados, Janot bateu na mesa para apontar os erros da força-tarefa mesmo já tendo se manifestado em defesa deles no Supremo.
Jeito
De todo modo, a realidade atropelou o teatro de Janot. O ex-juiz Sergio Moro condenou Lula a mais de 12 anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro no “caso tríplex”.
No entendimento de Moro, o apartamento no Guarujá foi dado a Lula pela construtora OAS em troca de “atos indeterminados” praticados pelo ex-presidente em favor da construtora. A lavagem de dinheiro teria ocorrido porque o apartamento foi mantido no nome da empreiteira (que, aliás, o arrolou como garantia num empréstimo). Ou seja, houve dissimulação da origem do bem, o que configuraria lavagem de dinheiro.
Moro deu um jeito nas falhas dos procuradores. Ele considerou que o crime antecedente à lavagem foi a corrupção passiva. Em português, Moro disse que o apartamento foi o fruto do crime e também a lavagem para ocultar que o mesmo crime aconteceu.