Na complexidade, é melhor ser Mané do que Neymar, escreve Hamilton Carvalho

PODER 360 – Estava certa vez em um congresso profissional quando ouvi um gestor de multinacional encher a boca para dizer que usava o conhecido teste Myers-Briggs (MBTI) para gerir as relações entre seus profissionais. Mal sabia ele que a validade científica desse teste já vinha sendo, há um bom tempo, duramente refutada.

Não é segredo que o mundo corporativo adora fórmulas de bolo, especialmente se tiverem algum aspecto de sofisticação e derem aquele clique intuitivo de que faz sentido. Um outro exemplo, esse mais popular, é o de estilos de aprendizagem. Você certamente já deve ter ouvido que as pessoas se dividem entre visuais, auditivas e cinestésicas, certo? Tenho uma má notícia…

Por outro lado, é certo que temos características diferentes e que há teorias e instrumentos que medem essas diferenças de forma sólida e científica. Uma dessas formas validadas de classificar as pessoas nos interessa em especial.

Trata-se da chamada teoria do foco regulatório, proposta pelo pesquisador Edward Higgins, da Universidade de Columbia (EUA). Basicamente, a teoria propõe que os indivíduos podem ter dois perfis distintos quando se trata de atingir seus objetivos nos diversos contextos da vida.

Uma analogia com o futebol ajuda. O primeiro perfil, denominado de foco de prevenção, é o daquelas pessoas que procuram garantir o resultado com uma retranca, evitando a derrota. Já o segundo perfil, o de foco de promoção, é o dos indivíduos que buscam sempre o ataque e a vitória. Um preza pela segurança, sensação de dever e contenção de riscos. O outro, pela busca de ganhos, ideais e assunção de riscos.

Para ficar ainda no contexto futebolístico, raramente você tem jogadores como o senegalês Sadio Mané (Liverpool), que ataca tão bem quanto defende. Seria algo como ter um foco ambidestro, de prevenção e promoção, ao mesmo tempo. O mais comum é que cada jogador tenha uma maior habilidade no ataque (como Neymar) ou na defesa. Como não é possível ter onze Manés em campo, fica evidente que um bom time é aquele que consegue equilibrar os dois perfis ou focos.

Mais de um autor na literatura de gestão percebeu a dificuldade das organizações com esse equilíbrio nos últimos anos, ao recomendar novas formas de atuação para que elas consigam lidar com os cada vez mais cabeludos desafios modernos. É certo que o modelo hierárquico, que pressupõe separação entre pensamento e execução e processos padronizados, não dá conta.

Então o que se lê eventualmente são propostas para combinar os dois focos, o de prevenção com o de promoção, garantindo que o arroz com feijão seja bem feito ao mesmo tempo em que se testam, com liberdade, novas receitas. Um autor, o professor de Harvard John Kotter, fazendo analogia com o mundo dos computadores, chega a falar em sistemas operacionais duplos, defendendo que haja duas estruturas em paralelo nas organizações.

Nada disso, como temos visto neste espaço, é algo que já não exista na natureza, em sistemas realmente complexos e bem-sucedidos, como colmeias, formigueiros e até o nosso sistema imunológico. É, em essência, um balanceamento entre estratégias de gestão dos recursos existentes e a exploração de novos caminhos.

Por outro lado, é muito raro ver uma organização capaz de colocar isso em prática de fato. Um dos motivos, muito bem explicado neste artigo, é o estágio do ciclo de vida em que a maioria das empresas se encontra, que acaba condicionando a estrutura de incentivos e a cultura pela qual seus gestores se guiam.

A ideia é que, no estágio inicial de uma pessoa jurídica (pense em uma startup), predomine um foco quase absoluto de promoção. A paixão e a liberdade para agir são máximas. Mas, lentamente, um foco de prevenção se impõe e isso evolui para um estágio em que passam a predominar a razão e uma liderança mais tradicional, desembocando, por fim, em uma fase ainda mais madura, em que o foco de promoção já se perdeu e o que predomina é a burocracia e o jogo de poder. O fato é que a maioria absoluta das empresas acaba perecendo em, no máximo, poucas décadas.

No setor público brasileiro, obcecado por burocracia e controle formal, nem dá para dizer que o foco de prevenção exista de verdade, porque, como testemunhamos com frequência, não se consegue nem gerir riscos adequadamente. Viadutos caem, barragens estouram, hospitais colapsam.

Também não dá para falar em foco de promoção, porque a inovação é tímida, quando existe, e um de seus requisitos essenciais, a possibilidade de erro, é tragicamente punida pelo nosso modelo de gestão pública.

Falta uma competência organizacional essencial, também rara no setor privado, que é a capacidade de reflexão e aprendizado com viés de ação – o que a literatura chama de competências dinâmicas. Assunto para outra coluna.

Por Hamilton de Carvalho

 

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