O dia em que Coari parou e a banda passou (publicado pelo jornal Repórter – agosto de 2008)

O jornal REPÓRTER, além de outros veículos, recebeu na última semana, de remetente ignorado, trechos das escutas telefônicas feitas pela Polícia Federal durante alguns dias do mês de agosto do ano passado (2007). Tais registros mostram os subterrâneos de um dia específico, o dia 15, em que o relatório da Comissão Processante que pretendia destituir Adail Pinheiro do cargo quase foi lido, dando início ao processo de cassação.

O prefeito de Coari enfrentava fortes denúncias de irregularidades nas compras da Prefeitura, e a bancada oposicionista da Câmara Municipal conseguira articular sete votos necessários para o início do processo. Os eventos do dia 15 de agosto mostram que a organização criminosa de Adail possuía várias frentes. Enquanto os advogados de Adail atuavam no plano jurídico com a ajuda dos juízes Ana Paula Braga e Rômulo Fernandes, a força policial do município, de propriedade do prefeito, era utilizada para intimidar e cercear a movimentação dos vereadores de oposição que pretendiam ler o relatório da Comissão Processante. As interceptações mostram o estado paralelo de justiça atuando de um lado, e o estado paralelo de polícia de outro.

“Tem que mandar prender os caras, se eles forem votar, rapaz!”, diz Adail Pinheiro a Adriano Salan, seu secretário de governo e um dos presos pela operação Vorax. Às 10h23, um agente da guarda municipal fala com Walcione Tavares: “Tá com mandado já, se o presidente voltar à reunião e tocar no assunto da CPI, vai ser recolhido”. “Que coisa boa!”, comemora Walcione, então o secretário de Comunicação da Prefeitura, que em seu blog na internet, às 15h05 daquele dia, estampava fotos de uma pequena multidão em festa, com o título “A vitória da Democracia!!!”.

Antes do grito de comemoração do secretário de Comunicação, uma ligação daquele dia ilustra a democracia aos moldes coarienses: “Não tem aquele cinegrafista de azul?”, pergunta um agente. “Sim, sim”, responde outro. “Aborda, vê o que tem e leva pra delegacia; dá direção perigosa e apresenta pro delegado”. Noutra ligação, às 11h14, o advogado do prefeito tranquiliza Adail Pinheiro, prevendo que os vereadores oposicionistas entrariam com ação em Manaus que cairia nas mãos da uma desembargadora chamada apenas de “Graça”, mas que ele (advogado) já teria articulado “uma pessoa aí que é muito amiga dela e a gente vai monopolizar”.

Como Coari calava a imprensa de Manaus

Em ligação às 17h14 do dia 24 de agosto de 2007, Adriano Picanha Salan pede ao seu advogado que “desarticulasse” uma matéria negativa que sairia no jornal A Crítica naqueles dias. E o advogado desarticulou. Três dias depois, Adail pergunta a Haroldo Portela, outro dos presos pela PF, se a matéria tinha sido publicada. Informado de que a reportagem não fora para as ruas, Adail pede que Haroldo separe “um tambaqui grande, uns peixes bem bacana aí”, pra levar para uma certa “Dra. Cristina”. Haroldo promete levar o agrado, com “uma farinha bonita que nós temos aqui, pois a Cristina é nossa amiga, né”.

No dia 13 de agosto de 2007, no calor das “articulações” em torno do abafamento da Comissão Processante de Coari, um desavisado chamado Valten entrevistou o deputado José Lôbo, ex-secretário de Obras de Adail, ao vivo, num programa de rádio. Adriano liga para um tal Getúlio: “Meu irmão, que porra é essa do Valten, rapaz? O Valten entrevistando o Lôbo ao vivo, por telefone, bicho… o prefeito tá muito puto com ele, olha bicho”. Getúlio, com a mesma dignidade e o mesmo espírito jornalístico já demonstrado em outros carnavais por diretores de jornal da capital, retruca: “Puta que pariu, eu não vi isso, rapaz”. Em seguida, Getúlio é convocado para se apresentar no gabinete de Salan, na Prefeitura.

Na mesma conversa em que cita nomes de deputados federais, senadores e vereadores coarienses, o advogado conta que falou com Robson e Marcos Santos, do Amazonas em Tempo, que teriam lhe prometido “fazer uma coisa legal” sobre os eventos ocorridos no dia 15 em Coari. “Depois tu compra A Crítica”, finaliza o advogado a Adail Pinheiro.

Mas o aparato midiático montado pelos auxiliares de Coari não servia apenas para apagar incêndios. Diversas gravações, vazadas durante a semana e publicadas na internet, mostram que a assessoria de Adail tinha forte influência nos jornais de Manaus, e frequentemente negociavam manchetes e páginas inteiras a favor de Adail. Há gravações que mostram donos de jornal cobrando “ajuda” da Prefeitura, em troca dos favores cedidos.

Os juízes

Ana Paula de Medeiros Braga, filha do primeiro casamento do secretário vitalício de cultura Robério, conhece bem o seu lugar, e mais importante, o lugar dos outros. Em dezenas de gravações, Ana Paula foi flagrada em conversas mais amistosas do que o recomendado com uma das partes em processos da importância da comissão processante da Câmara Municipal e do repasse do ICMS. Sempre em contato com Adriano Salan, o Picanha, a juíza resolvia todo tipo de problema pessoal, da contratação do namorado, o dentista Bruninho, como coordenador de saúde bucal do município, até as obras de reforma de seu flat, cujo aluguel era pago por Adriano.

Diferentes de Ana Paula Braga, que enfeitava com seus óculos de sol o front da comarca de Coari, os juízes Hugo Levy e Rômulo Fernandes faziam a retaguarda da organização criminosa de Coari. Nas sombras das paredes de granito do TJA, os dois passavam informações privilegiadas sobre os processos, fazendo reuniões com Adriano e o advogado José Fernandes. Em dezenas de ligações, Hugo e Rômulo demonstram intimidade com Adriano Salan, o orientam sobre horários, prazos, documentos e contatos. Nos raros intervalos comerciais entre as liminares, as petições e os despachos, porém, conversam sobre assuntos mais amenos, como a negociação de empregos na assessoria de seus gabinetes.

Em mais de uma conversa, juízes e advogados citam o nome Auzier. O exercício de preencher as linhas pontilhadas deixadas pela linguagem cifrada das ligações pode causar erros, mas a lógica diria, pelo histórico das ligações e pelos papéis claramente definidos, que os advogados de Adail utilizavam os juízes Hugo e Rômulo como pontes, dentro do tribunal, para chegar a Auzier. As decisões do agora presidente do TJA, questionadas pela celeridade incomum à justiça brasileira, são ilustradas por diálogos que mostram a ingerência dos agentes de Coari nos trâmites do tribunal, em Manaus.

Os trechos vazados do processo a que o REPÓRTER e dezenas de outras pessoas tiveram acesso, mostram, no fundo, o que já era de conhecimento da sociedade, desde que os primeiros trechos foram publicados pelo jornal Diário do Amazonas. Foi diante de alguns detalhes mais reveladores que decidiu-se publicar o que chegou até a redação. A equipe de governo de Adail Pinheiro, chamada pela Polícia Federal de ORCRIM (Organização Criminosa), possuía tentáculos em todas as esferas da sociedade, desde a farra com o caixa da Prefeitura, passando pela conivência da grande imprensa de Manaus e da intimidação de opositores em Coari, até chegar aos gabinetes de magistrados do Tribunal de Justiça do Amazonas.

À imprensa Jocenildo Cavalcante, delegado responsável pelas investigações da Operação Vorax, disse que “a Polícia Federal não pode investigar membros do Poder Judiciário, a não ser que haja uma requisição do Tribunal competente”. O delegado disse que os detalhes apurados sobre a possível participação de membros do Judiciário já foram encaminhados para a Justiça Federal. “Nesse caso, o que pode ocorrer, é que isso seja enviado a Corregedoria do Tribunal de Justiça”, acrescentou.

Não é de se estranhar que num país como o Brasil, em que a justiça se move tão lentamente, se proliferem quadrilhas como a que se instalou em Coari nos últimos anos. Corrupção e desvios éticos não são particularidades nacionais, e para proteger a sociedade dessas pessoas o regime democrático conta com o aparato policial e judiciário, sejam eles lentos ou ágeis. Este jogo só se mostra cruelmente desigual quando a sociedade, que mantém de pé as instituições democráticas, se vê traída por aqueles que deveriam protegê-la dos malfeitores.

O senso comum, numa derrocada perigosa para estas mesmas instituições, já questiona, em alguns setores, a existência dos poderes legislativos, diante de tantos escândalos de corrupção. Para o cidadão comum e minimamente informado sobre o que os seus parlamentares andam aprontando, começa a ganhar força a tese de que não vale a pena manter uma estrutura tão cara, ineficiente e corrupta. Mas o poder judiciário, protegido pela liturgia, pela cerimônia e pelo latim, sempre andou à margem do mar de lama que arrasta biografias parlamentares à vala comum dos pequenos ladrões.

Com as revelações das escutas de Coari, muito mais do que os milhões roubados dos cofres públicos, o que se perde é a utopia da isenção do judiciário. Quando os ladrões saem às ruas amparados pela lei, representada por atores que a vendem em troca de ingressos no Carnaval, o alarme que soa é grave, pois descobre-se que o problema da lentidão da justiça é café pequeno diante da revelação de que, pior do que lenta, ela é corrupta.

A máquina judiciária logo se moverá, com sua cerimônia e seu latim, no esforço para separar o comportamento dos juízes Hugo Levy, Ana Paula e Rômulo Fernandes do resto da patota da toga. É também de se supor que até isso deixe de ser feito, dada a desimportância com que o Amazonas tem sido brindado, por suas maiores autoridades, quando o assunto é se defender de acusações de corrupção. Mas, ainda que seja encampada a tese de que os desvios dos três foram isolados, uma exceção, o estrago já terá sido feito. Não, claro, à biografia dos magistrados, pois estas não se movem ao sabor da opinião pública. O estrago maior terá se dado na confiança da população. Não pode ser tolerado que um magistrado se comporte como um meliante legal, que faz uso das ferramentas que lhe foram outorgadas pelo dinheiro do povo, exatamente contra o povo.

Deixa de soar ridículo, diante dos fatos, que, por questões morais, legais e éticas, os juízes precisem ser lembrados que:

• Não podem pedir uísque com gelo, de presente a funcionários da Prefeitura;
• Não podem pedir assentos em vôos da Prefeitura;
• Não podem pedir o agenciamento de encontros sexuais com meninas, a funcionários da Prefeitura;
• Não podem pedir empregos pro namorado, a funcionários da Prefeitura;
• Não podem pedir pagamento de aluguéis, a funcionários da Prefeitura;
• Não podem pedir mão-de-obra, material e dinheiro para obras particulares, a funcionários da Prefeitura;
• Não podem pedir ingressos para o show do “Nana”, a funcionários da Prefeitura;
• Não podem fazer passeios de barco, com funcionários da Prefeitura;
• Não podem manter conversas pessoais, em suas residências funcionais, com funcionários da Prefeitura;
• Não podem falar, muito menos em linguagem codificada, e muito menos ainda sobre processos que envolvem uma quadrilha da Prefeitura, com funcionários da Prefeitura;

A quem interessar possa: Francisco das Chagas Auzier toma posse como presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas no próximo dia 6 de julho.

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