Terminou o “mutirão carcerário” promovido pelo Conselho Nacional de Justiça. Dizem os jornais que duzentas e sessenta e nove pessoas foram postas em liberdade em decorrência dos trabalhos.
É possível inferir, aplicando princípio de lógica elementar, que duzentas e sessenta e nove pessoas estavam presas ilegalmente. Menos mal que se lhes restaurou a liberdade.
O que fica sem explicação é o motivo pelo qual essas prisões foram feitas e/ou mantidas, dentro de um quadro de normalidade jurídica em que a liberdade há de ser a regra e o encarceramento, a exceção.
Também não se trazem a público os nomes dos responsáveis pela prática dessa gritante ilegalidade. A coisa passa, depois de aplicada a compressa paliativa, vai se repetir daqui a algum tempo, até que novo mutirão venha a descobrir e apontar nova afronta à democracia, sem que nenhuma providência seja tomada para impedir essa prática abominável.
Estou careca de repetir que, no Brasil, a “cultura da prisão” ganhou volume de epidemia.
Com um povo cansado de assistir à monótona repetição de atentados contra o dinheiro público e com a mídia tecnicamente ignorante em aspectos fundamentais do direito, o clamor pela prisão entrou na ordem do dia das aspirações nacionais. Vamos prender que tudo se resolve, é como se pode resumir o entendimento popular a respeito das hipóteses de que se cuida.
É engano tolo e prejudicial. A função inibidora da ameaça de sanção penal é quase nula, sabem-no todos.
Nenhum criminoso consulta o código penal antes da prática delitiva. Ademais disso, um sistema de penas inteiramente ultrapassado no tempo não permite encontrar um equilíbrio entre a ofensa e o castigo, resultando daí que, na maioria dos casos, a pena criminal perde o caráter de utilidade, que lhe deve ser inerente. Vira vingança pura e simples.
Ora, sabendo que esse sistema ainda tem a prisão como penal principal, não é difícil concluir que exacerba-la, seja aumentando as hipóteses de sua incidência, seja torando-a mais drástica, em nada pode contribuir para a evolução dos critérios de política criminal.
Se não se entende que o crime não é um fenômeno exclusivamente jurídico, por isso que tem raízes sociais, vai-se chegar à conclusão errônea de que é possível combatê-lo com instrumentos meramente jurídicos. E é aí que entra o endeusamento da lei punitiva como fórmula sacramental para resolver todos os problemas da sociedade.
É assim que têm funcionado as engrenagens do sistema. O povo clama por mais e mais prisões. O legislativo, numa resposta demagógica e irresponsável, atende ao grito e se dana a elaborar leis que seriam risíveis se não fossem trágicas. O executivo, sem exibir maiores preocupações, as sanciona, colocando-as no ordenamento jurídico, o que significa dizer que seu cumprimento passa a ser exigido. O judiciário, sem cultivar nenhum senso crítico, passa a aplicar essas iniquidades legais pelo só fato de serem formalmente legais, esquecendo que a legalidade perde sentido se não tiver como desiderato a realização da justiça.
Não foi por outro motivo que a simples admissão de um recurso no Supremo Tribunal Federal causou comoção nacional. Num maniqueísmo, que não pode ser ingênuo porque é traiçoeiro, traçou-se um quadro em que admitir os embargos infringentes era ser a favor da impunidade, enquanto sua rejeição ganhava foros de heroísmo quixotesco, pois a lança de seus cavaleiros iria derrotar os moinhos de vento da criminalidade.
Mas o próprio Supremo tem culpa no cartório. Inventando moda, condenou pessoas com base numa teoria conhecida como “do domínio do fato”, que, em última análise, consagra a responsabilidade objetiva, soterrando o democrático e salutar princípio da responsabilidade pessoal, segundo o qual ninguém pode ser punido por fato de terceiro. E, o que é pior, adotando o tal “domínio do fato”, não teve a coragem de aplicá-lo em toda a sua extensão, pois deixou de fora o ex-presidente da República, que, por óbvio, mantinha, ele sim, o domínio de todos os fatos.
É por essas e outras que a minha velhice só me leva ao riso quando vejo as mirabolantes propostas que surgem quando o tema é combate à criminalidade. Foi o que fiz quando li que querem transformar o futuro estádio de futebol em cadeia, com o apelido de centro de triagem. Dei gostosas gargalhadas. Como conheço o desembargador Sabino Marques e sei de sua absoluta correção, tive que recorrer à teoria do erro no direito penal. Se “responde pelo crime o terceiro que determina o erro”, é urgente descobrir qual foi o pândego que induziu o desembargador a semelhante disparate. A tal Arena da Amazônia já tem sido, desde a demolição do Vivaldão, centro de crimes indescritíveis. Transformá-la em cadeia seria a apoteose.