Reinado Azevedo – O presidente Jair Bolsonaro já “começa a ser vítima de sua própria concepção do mundo”, para empregar frase conhecida pela sociologia. Durante mais de duas décadas, ela serviu para lhe garantir uma boa vida na irrelevância barulhenta. Com ela, fez três filhos políticos. Sempre por perto, Fabrício Queiroz cuidava daquela contabilidade paralela. Aliás, a lentidão na apuração do caso já ultrapassou a linha da pornografia política. Aí um conjunto de circunstâncias que não eram de sua escolha — a má fortuna do país, de que o epicentro é a Lava Jato —, incluindo a facada, preparou o terreno para alguém com os seus dotes intelectuais. Como se deram mal todos aqueles que apostavam que poderiam tutelá-lo — procuradores, Sérgio Moro, militares, empresários —, o homem resolve, afinal, ser presidente mesmo. E temos o que temos.
Ocorre que o reverso da fortuna parece que chegou mais cedo do que imaginava. O chato e perigoso é que o Brasil também vai pagar o preço. Bolsonaro teve de cancelar sua ida a Nova York para receber o prêmio de Homem do Ano da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Entes públicos e privados se recusaram a sediar o evento. Empresas retiraram o patrocínio. Preparava-se uma tempestade de protestos que o exporiam, na cidade mais influente do mundo, ao opróbrio mundial. E não seria por nada que ele não tivesse feito ou dito. Em quatro meses de governo, sejamos precisos, ainda pesa mais o dito do que o feito. Mas aquela tal concepção de mundo exige que ele se comporte permanentemente como um falastrão.
Resumo da ópera: temos um presidente da República que não pode participar de uma cerimônia privada, de dimensão pública, numa grande capital sem ser enxovalhado. Eis o líder que viria, segundo as suas palavras, para mudar a reputação do Brasil no mundo. De certo modo, está cumprindo a promessa.
A nota de Rego Barros sobre a desistência deveria, convenham, trazer como assinatura apenas “Presidência da República”, não o nome do general, que pertence à ativa. Diz o seguinte:
O Presidente da República agradece a homenagem proposta pela Câmara de Comércio Brasil-EUA, ao escolhê-lo “Personalidade do Ano de 2019”.
Entretanto, em face da resistência e dos ataques deliberados do Prefeito de Nova York e da pressão de grupos de interesses sobre as instituições que organizam, patrocinam e acolhem em suas instalações o evento anualmente, ficou caracterizada a ideologização da atividade.
Em função disso, e consultados vários setores do governo, o Presidente Bolsonaro decidiu pelo cancelamento da ida a essa cerimônia e da agenda prevista para Miami.
Otávio Santana do Rêgo Barros
Porta Voz da Presidência da República.
Ao selecionar seus alvos no Brasil e fora dele, Bolsonaro, suponho, também o faz em nome de “interesses”, não é mesmo, general? E é inegável que está despertando a atenção do mundo. Estou enganado ou “o nosso presidente”, como diz Rego Barros, defendeu a reeleição de Donald Trump e prestou reverência a um pilantra da envergadura — ou largura — de Seteve Bannon? Se um político estrangeiro pode, em solo americano, se meter na política local, por que um político local não pode rechaçar a presença desse político estrangeiro?
O Brasil vive a sua ruína orçamentária, e o presidente promete, numa feira rural, que vai dar licença para o abate de invasores de terras; flerta com a intervenção militar na Venezuela (voltarei ao assunto); resolve dizer em quem os argentinos devem votar; lastima o turismo gay e diz que são bem-vindos os estrangeiros que queiram transar com mulheres; promove uma verdadeira razia nas políticas ambientais; permite que seu ministro da Educação anuncie corte de verbas a universidades em que há “balbúrdia”; hostiliza políticas indigenistas e de proteção a quilombolas; manda tirar do ar uma propaganda do Banco do Brasil porque ela traria o tal “viés ideológico” ao exaltar a diversidade. Ah, claro! O BB havia comprado uma mesa de 10 lugares no tal evento, ao custo de R$ 47,5 mil
Se ninguém esperava um estadista no Planalto, mesmo os mais pessimistas chegaram a achar que Bolsonaro acabaria se adequando às regras do decoro e às imposições da realidade. Não está acontecendo. E, como se percebe, suas pregações delirantemente reacionárias acabam atravessando fronteiras.
E sempre chega a hora, meus caros, em situações assim, em que o desprestígio do governante atinge os negócios. Amigos que moram em várias partes do mundo relatam que somos motivo de chacota e preocupação — os que conhecem, claro!, alguma coisa sobre o Brasil, o que também não é a regra.
No dia 13 de abril, Filipe Martins, assessor de Bolsonaro, reagiu assim às críticas feitas pelo prefeito de Nova York:
“Não há surpresa alguma em ver Bill de Blasio — um sujeito que colaborou com a revolução sandinista, que considera a USSR um exemplo a ser seguido e que faz comícios no monumento dedicado a Gramsci no Bronx — criticando o PR Bolsonaro. Surpresa seria uma toupeira dessas o elogiar.
Que coisa! A afetação desse rapaz é tal que ele emprega a sigla pela qual a antiga União Soviética era conhecida na versão em inglês: em vez de URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), ele prefere USSR (Union of Soviet Socialist Republics). Logo começará a chamar os EUA de “US”, a Otan de NATO e a ONU de “UN”. É compreensível. Afinal, o pensador que extrai lições de política de “Game of Thrones” é um assessor para assuntos internacionais
Como se nota, os efeitos de seu notável trabalho já se fazem sentir