Nas minhas longínquas infância e adolescência, o chefe da Igreja Católica era o cardeal Eugênio Pacelli, que pontificava com o nome de Pio XII. Eram tempos de obscurantismo e intolerância, que muito lembravam, principalmente no Brasil, as práticas do medievo.
Aqui, a predominância desse credo era indiscutível e indisputável e isso, por si só, já facilitava comportamentos que hoje seriam inadmissíveis. Já neste espaço referi a vizinhança da casa de meus pais, na rua Leonardo Malcher, com o terreiro onde mãe Joana Galante realizava suas práticas de candomblé.
Apesar da diversidade de crenças (os “velhos”, especialmente a “velha” eram católicos fervorosos, beirando a carolice), a convivência era pacífica e civilizada. Nesse quadro é que me recordo de que várias vezes o professor Valois teve que interferir em favor da mãe de santo, que era presa pela polícia simplesmente porque estava realizando os rituais de sua fé. Incrível, mas é verdade.
Nas sextas-feiras santas, o espetáculo chegava a ser macabro. As emissoras de rádio não tocavam outra coisa além de músicas sacras, algumas de duvidoso gosto.
As salas de cinema, todas elas, exibiam um desenho animado, com a duração de uns quarenta minutos, intitulado “Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Era uma produção ridícula, mas que ganhava foros de cerimônia religiosa, a ponto de algumas beatas assistirem à fita com a cabeça devidamente coberta pelo véu, de uso obrigatório para o sexo feminino nas igrejas.
Nas casas, a lei do silêncio e outras práticas bizarras se impunham. Quem não jejuava tinha que comer à mesa nua, já que o uso de uma simples toalha era considerado um desrespeito. Falar em carne bovina nesse dia raiava ao sacrilégio e as crianças tinham que encontrar brincadeiras em que a produção de ruídos fosse mínima ou nenhuma.
A quebra desse preceito implicava, inelutavelmente, na punição física, cuja execução se dava, sem mais aquela, na manhã do sábado de aleluia.
Não existia ECA e, se existisse, estaria ele devidamente recolhido à sua posição inferior na hierarquia das leis. De qualquer sorte, era menos ruim que o “Aleluia, glória a Deus”, que hoje se repete à saciedade, enquanto se encenam farsas de curas supostamente milagrosas nos “templos” que se reproduzem sem controle e sem critério. E sem pagar impostos.
No quesito “sexo” o bicho pegava. Obstinada com a ideia do “pecado original” e com a lenda bíblica a envolver macieira e serpente, a Igreja Católica tinha verdadeira ojeriza a tudo o que pudesse lembrar, mesmo remotamente, essa prática tão antiga e deliciosa, que vem permitindo a renovação da humanidade ao longo dos tempos.
Uma simples masturbação era um pecado, não digo mortal, mas de reconhecida venialidade, a exigir fosse ele relatado ao padre no momento da confissão, de modo a permitir receber o sacramento supremo da comunhão.
Por isso, os meninos que ajudávamos à missa na igrejinha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e que integrávamos a Cruzada Eucarística, estávamos enfileirados à porta do confessionário no sábado à tarde. Lá dentro, todos, sem exceção, usavam do eufemismo de proclamar ao reverendo : “Padre, eu fiz imoralidade”. Ao que se seguia uma pergunta cretina: “Sozinho ou com outro”. Que eu me lembre, a segunda opção nunca foi revelada.
Os tempos mudaram e, com eles, a Igreja Católica. A missa, para se tornar compreensível, passou a ser celebrada em português e a visão sobre temas como a homossexualidade já não guarda aquele ranço inquisitorial.
Internamente já não se teme falar da gravidade que trazem si os casos reconhecidos de pedofilia, pugnando-se pela aplicação de corretivos nos que cometem o desvio.
Tudo isso vejo de longe, eis que já se perdem na memória as épocas em que a religião teve para mim alguma importância. Mas, é claro, o avanço rumo à racionalidade me compraz, quando nada por ser uma forma de tolher o fanatismo. O próprio Papa já não é o mesmo.
O referido Pio XII era de comportamento político altamente questionável, bastando lembrar a quantidade de água benta que aspergiu sobre os canhões fascistas de Benito Mussolini.
O atual, singelamente chamado Francisco, tem postura inteiramente diversa e parece encarar o mundo com uma visão realista, a lhe permitir a compreensão dos problemas na busca correta de soluções.
E está no Brasil. É uma oportunidade de ouro para que eu, ainda que efemeramente e nada mais que de passagem, relembre minhas velhas práticas rituais e faça a ele uma confissão.
Como, apesar de argentino, dizem ser um homem bondoso, simpático e compreensivo, haverá ele de me conceder seu sacrossanto perdão.
Eis a minha falta que, pessoalmente, tenho por imperdoável e apta a me levar ao inferno: uma vez, no ano de 2002 e no segundo turno, votei no Lula. Que vergonha! Quando nada, uma consumada leseira.