PEIXE E TUCUMÃ

Por Felix Valois

Nossa decantada hospitalidade não tem sido muito bem reconhecida ultimamente. Primeiro foi o triste episódio do técnico da seleção de futebol da Inglaterra, que, esbanjando ignorância, disse cobras e lagartos da terrinha, revelando um acendrado medo de tarântulas, as quais, segundo ele, estariam a passear comodamente em nossas ruas e praças, prontas para a aplicação de exemplares ferroadas nas brancas pernas britânicas.

Agora, minhas filhas me mostram um vídeo em que uma senhora, com voz esganiçada e a título de reclamar da prestação de algum serviço, vociferou que os amazonenses “só sabem comer peixe e descascar tucumã”.

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Não com essa singeleza linguística, eis que, tamanho era o ódio, os dois substantivos foram devida e rasteiramente qualificados por palavrões cabeludos, passando a criatura aquática a ser “porra do peixe”, enquanto o vegetal foi promovido a “caralho de tucumã”.

Tudo, como se vê, muito civilizado, a revelar o elevado grau de cultura e educação doméstica da revoltada consumidora.

Na minha santa ingenuidade só não consegui entender o que a dama há de ter contra os dois produtos, integrantes de nossa dieta e contra os quais, até agora, nunca tinha ouvido dizer nada que não fossem elogios. Mas não seria eu a discutir gostos, até porque mesmo para ser um idiota completo é necessário um mínimo de talento e imaginação.

Coisas de que, pelo visto, não parece ser bem provido o farnel cultural da dita senhora. Assim não fora e poderia ela ter buscado maiores e melhores informações sobre a razão de ser das preferências culinárias que os caboclos nutrimos, dando valor à farinha do Uarini e indo à cata da verdadeira murupi, que, misturada a um tucupi autêntico, torna qualquer coisa deliciosa.

Descascar tucumã é chato, tenho de reconhecer. E trabalhoso. Entretanto, comer-lhe as carnes, não digo que seja tão saboroso quanto há de ser uma noite com a Nicole Kidman, mas tem um valor imponderável. Meu conselho: arranje quem descasque e coma, pura e simplesmente.

E deixe de leseira. Há de ver que basta completar com a farinha para degustar um cardápio da melhor qualidade. Se isso não bastar, forneço uma receita particular.

Retire o feijão da geladeira e coloque num prato, sem levar ao fogo ou ao micro-ondas. Tenha o cuidado de já ter mandado descascar e cortar coisa de dez tucumãs. Sobre o feijão coloque as lâminas da fruta e despeje molho de pimenta murupi, no tucupi ou no azeite. Se não gostar, é doido.

Digamos, porém, que seja irreversível a aversão da consumidora indignada. Ainda assim não deveria ela revelar tamanho desprezo, pois o tucumã é capaz de lhe proporcionar uma atividade que, por exigir paciência, contribuirá para lhe diminuir o estresse, evitando uma crise nervosa como a que foi objeto da filmagem.

Refiro-me à confecção dos famosos “botões de tucumã”, atividade em que, na infância, éramos expertos eu e os da minha idade.

Com o tucumã já devidamente saboreado (não pela senhora, é claro, mas por alguém que seja normal), limpe-lhe bem o coco e quebre-o tão pela metade quanto seja possível. Daí por diante, dê-se ao trabalho de lixá-lo bem, por cima e pela base, para o que pode empregar uma lixa convencional ou qualquer calçada de cimento.

Aperfeiçoada a forma, passe estearina ou cera de boa qualidade e terá um time de botão capaz de vencer qualquer campeonato da modalidade.

Quanto aos peixes, tenho que indagar: será que ela já comeu um tambaqui assado na brasa? Não desses de viveiro, mas dos que vêm interior, pescados em nossos lagos. A costela é um manjar e o peixe, em forma de caldeirada (onde não pode faltar o tucupi), chega a empanzinar. Claro que é preciso saber fazer, coisa em que, reconheço, não sou especialista. Mas há muitos amazonenses que sabem. E não amazonenses, também, pois a maioria deles não se deixou contaminar pela ingratidão ou pela idiotice.

Sugiro também a sardinha. Não dá para comer em um flutuante, já que ali os preços são de hotel de luxo. Mas, como é tão simples fritá-la e deixá-la bem torrada, em qualquer lugar é possível degustar o pitéu. Se quiser algo mais sofisticado, recorra a uma pescada recheada que, também nisso, nós amazonenses, tão esculhambados pela senhora, somos exigentes.

E, glória das glórias, rendo minhas homenagens ao pirarucu de casaca, prato que corre parelhas com a tartaruga, sendo difícil dizer qual dos dois leva a palma. Óbvio que o pirarucu não pode ser confundido com bacalhau e deve se ater às suas origens, usando-se apenas os ingredientes regionais.

Da mesma forma, quanto à tartaruga, renovo a recomendação de dona Lucíola: prepare-a apenas com alfavaca, chicória e cheiro verde, sem nem pensar nessa tolice de ovo de galinha, ervilha, azeitona ou maxixe.

Se nada disso puder satisfazer a consumidora vociferante, estamos na casa do sem jeito. Há ela de ter perdido completamente o paladar, de tal sorte que será impossível contemplá-la com algo que lhe caia no gosto. Restar-lhe-á o quê?

Nada vejo, pois, sendo tão refinada, não cuido se contente mesmo com caviar, até porque não passa de ova de… peixe. Vem-me uma última lembrança, recurso final de quem, a qualquer custo, insiste em preservar as tradições amazonenses, orgulhando-se de aqui ter nascido, aqui viver, trabalhar e ser feliz.

Assim é que, como derradeiro recurso, minha firme sugestão é a de que a indigitada senhora tenha sempre à mão um candiru. Se não é tão saboroso como seus similares aquáticos, pode, de qualquer sorte, servir de consolo para quem se mostra tão intransigente.

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